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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Imagem

São duas da tarde e a paisagem que se estende para lá dos meus olhos é uma imagem familiar: mar, areia, sol, cidade, azul, verde. Mesmo que neste momento feche os olhos a imagem continuará a existir, por dentro e por fora, igual, com mais ou menos pormenor. No entanto, por muito que vos queira mostrar, por palavras, esta imagem, este lugar, a tarefa aparenta-se impossível. Repito-vos: mar, areia, sol, cidade, azul, verde. E para vocês nada disto fará algum sentido. Talvez arranjem as palavras à vossa maneira e criem um lugar que não é este de que vos falo. As dificuldades da escrita passam muito por aí. Por esta projecção de tudo o que temos cá dentro através das palavras. Não é fácil. 
Quando comecei a escrever, ainda miúdo, diziam-me que escrever não era vida para ninguém, ser artista é muito difícil. Quando comecei a partilhar diziam-me para guardar as palavras nas gavetas, não devemos partilhar o que sentimos. Quando comecei a ter alguns seguidores havia quem me dissesse para estar quieto por não ter jeito nenhum para escrever. Agora que estou onde estou, a fazer o que faço, dizem-me que nunca chegarei onde quero chegar.  E enquanto o caminho se perpetuar, durante o curto momento que é a minha vida, continuarei a ser demovido de avançar, a ser tentado a cair na inércia: por ser difícil, por não ser suficientemente bom, por dever seguir as direcções que todos os outros apontam.
É verdade: não é fácil. Viver, escrever, amar, crescer, navegar, construir. Tudo o que nos constrói requer esforço. Porque o mundo, como existe, é uma máquina de destruir. Daí ser tão fácil nos destruirmos uns aos outros, nos desacreditarmos uns aos outros, mas tão difícil construir. O mar bate constantemente na pedra, mudando-lhe a forma, o vento arredonda-lhe as esquinas, ambos a vão transformando em areia, ao longo do tempo. Mas por mais que o tempo passe, o mar, o vento não transformarão a areia novamente em pedra. Acho que somos todos um pouco como aquela pedra, exposta aos elementos. Sabemos que no fim seremos areia, porque a realidade é perita em destruir-nos, mas, enquanto vivermos, vamos resistindo, fiéis à nossa génese, e ao nosso propósito mundano. 

Uma última imagem:
onda,
pedra,
espuma,
cidade,
azul, 
verde, 
casa,
horizonte


PedRodrigues


sábado, 10 de fevereiro de 2018

Amor 21

Era na altura em que as laranjas amadureciam nas árvores. O frio, a chuva, a nogueira despida,  ainda mostravam que era inverno. 
D. apaixonou-se por C.. Foi um amor à primeira vista. Um desses amores que entram como o bico da faca na carne, incrustando-se até ao cabo de uma vez. Um frio metálico, dilacerante, que deixou D. petrificado, de raízes plantadas como a velha nogueira do quintal, os seus dedos tremiam como os galhos da árvore empurrados pela brisa gelada daquele inverno.
C. estava demasiado concentrada no ecrã do seu telemóvel para se apaixonar por quem quer que estivesse para lá do objecto. O analógico aborrecia-a de morte. Vasculhava com os dedos finos as vidas alheias. Por vezes deixava sair um sorriso ligeiro, mais espasmo que reacção voluntária. Os lábios dela tinham curvas suaves, não haveria perigo em beijá-los, pensou D., enquanto o gume da faca o cortava mais um bocadinho por dentro.
C. guardou finalmente o telemóvel, o filtro com que maquilhava a vida. O céu não é assim tão azul, pensou. Se o telemóvel tivesse mais um pouco de bateria talvez guardasse lá dentro o céu para o mostrar ao mundo, para que os outros o pudessem ver um pouco mais azul e a felicitassem por tão belo registo da realidade - embora na realidade o céu não fosse assim tão azul. 
D. pensou em falar com C., mas a ideia pareceu-lhe absurda e logo a embrulhou e atirou para longe. 
O autocarro chegou e levou C. consigo.
Mais tarde, já o céu de inverno cobria de preto os galhos e as laranjas, D. deu por si agarrado ao motor de busca, procurando C.. Não lhe sabendo o nome, mas ainda lhe recordando os traços do rosto, deu por si numa missão que se adivinhava praticamente impossível. No entanto, a persistência revelou-se benéfica e a fotografia de C., dentro de um quadrado minúsculo, sorria para ele, de dentes muito direitos.
D. escolheu uma fotografia boa, em que se aparentava maior, mais bonito, mais viajado, mais feliz. Ninguém gosta de pessoas mastigadas pela realidade. Enviou o pedido de amizade e esperou. C. aceitou. O D. digital interessava-lhe. 
Viu uma fotografia das laranjas e disse que gostava disso. As laranjas são mais doces quando são fotografadas.  



PedRodrigues

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Coisas minhas

Dentro da minha cabeça tudo parece mais poético, mais artístico. Parece que quando as palavras saem, e apanham ar, oxidam, como o ferro escarnado em paredes antigas. Soo muito melhor debaixo da pele, dentro do perímetro craniano. Cá fora tudo se atropela, tudo parece gasto. Era óptimo que as palavras jorrassem para fora do corpo como o sangue quando cortamos uma artéria. Seria um belo e infeliz destino para as palavras: jorrarem do corpo como sangue. Mas é talvez isso que elas sejam: sangue. Algo que corre por dentro num circuito fechado. Talvez.


PedRodrigues

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

C.

É engraçado como algumas coisas começam ao fim do dia. Agora, algum tempo depois, dou por mim a pensar nisso dos começos. Agora, depois, no fim, dou por mim a pensar no ponto de partida: pôr do sol, rio, o céu arroxeado, lindíssimo, o teu rosto meio iluminado, meio protegido pela sombra. Deus, como era óptimo ver-te sorrir. Às vezes a cidade ainda cheira a esse final de tarde; devia ser primavera - tenho a certeza que era primavera: trazia um pulóver cinzento, a camisa por baixo, o calor não abundava (a não ser no teu sorriso). É engraçado como agora me lembro. Acho que, algures, a meio do caminho, alguns pormenores caíram no oblívio da rotina. Foi assim que lhe chamaste: rotina. Uma coisa que se intromete entre duas pessoas e, ao que parece, é como um nevoeiro que se vai adensando até que um não consiga ver o outro. É irónico como a proximidade entre duas pessoas, a partilha constante de momentos, de movimentos, de expressões, se torna numa espécie de distância. Algo que começa como apenas centímetros a separarem dois corpos, - nesse momento, ainda somos o hífen no verbo - até que, quando damos conta, estamos em páginas diferentes, em livros diferentes, em prateleiras diferentes. E o tempo passa e nós olhamos para trás - somos peritos em olhar pelo retrovisor, será que temos medo que o passado nos atropele? Não sei. Sei que vamos escavando da pele ao osso e, por vezes, quando olhamos para cima, estamos no fundo do poço. Escavamo-nos uns nos outros, alguns para procurar abrigo, outros para deixarem espaços vazios. Mas agora isso pouco importa. Quero apenas recordar aquele final de dia em que te conheci: o céu, o sol, o rio, os teus olhos, o teu sorriso de menina. Deus, como ficavas bonita a sorrir. Era primavera. Era, sem dúvida alguma, primavera. 



PedRodrigues

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Mata bicho

Devoro livros
como quem devora
um farto pequeno-almoço
depois de uma extenuante 
noite de son(h)o(s)

O pequeno-almoço é a refeição 
mais importante do dia




PedRodrigues

Classificados

Procuro:

alguém com quem construir um passado; alguém com quem possa decorar as paredes de uma casa com memórias; alguém com quem ficar: mesmo que o estuque caia, que os pilares e as lajes abanem, que o tempo se instale como as manchas de humidade; alguém com quem cartografar novos mapas: novas formas de me perder; alguém com quem partilhar o cheiro das primeiras chuvas de inverno; alguém com quem falar sobre o desabrochar das primeiras flores da primavera; alguém com quem adivinhar a vida das ondas; alguém com quem engomar as pregas dos lábios com beijos; alguém com quem discutir os temas mais banais, recauchutar os discursos mais eruditos; alguém com quem desabafar o medo da vertigem; alguém a quem dar a mão, antes de saltar para o incerto; alguém assim: impossível de cingir aos limites de um texto.


PedRodrigues