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segunda-feira, 12 de março de 2018

Já não

Foi uma daquelas perguntas inocentes
- Conheces?
que as pessoas nos fazem numa situação banal. Olhei-a novamente. Casaco de cabedal preto, cabelo apanhado, batom vermelho a reforçar a curva do sorriso. Meu Deus, como era bonito aquele sorriso. Não como uma feição a que estamos habituados a ver repetida. Não como aqueles sorrisos muito direitos de capa de revista. Nada disso. Era um sorriso bonito como um lugar. Como um lugar onde queremos ficar e, eventualmente, morar. Talvez não faça sentido, mas foi assim que a vi. Para mim é normal, tento poetizar tudo. Gosto de transformar a realidade em poesia e, a verdade?, com ela não precisava de me esforçar muito. Ainda só vos falei do sorriso, mas não era apenas isso que me fascinava. Sabem como toda a arte começa como uma  afronta ao status quo? Ela era uma espécie de motim e, por conseguinte, a forma mais crua de arte. Uma mulher para quem olhamos e percebemos, logo, num piscar de olhos, que é ali que tudo pode começar e acabar. Tudo.
Mas falava-vos da pergunta. A inocência da pergunta. Passava da uma da manhã. Não precisava de olhar para o relógio. Sabia-o. Para ela estar ali, sentada com as amigas, com um copo de vinho à frente, só podia passar da uma. Quando a pergunta começou a ganhar forma, a ser uma interrogação e, ao mesmo tempo, uma percepção da realidade, dei por mim numa viagem. Milhares de recordações me invadiram naquele momento e eram como soco no estômago. Um impacto horrível entre o presente e o passado. Dei por mim novamente sentado, ali, naquela mesa, a beber e a rir com ela e com as amigas. Nessas noites em que tudo parecia fazer sentido e nada parecia fora do lugar. Dei por mim a recordar os beijos, o sabor dos lábios, as marcas do batom que ela, gentilmente, teimava em limpar e eu tentava perpetuar por achar serem uma forma bonita de a guardar no meu corpo. Nesse momento senti aquela vertigem, sabem? Aquela sensação de vazio na boca do estômago, como quando estamos a cair de um sítio muito alto. Não sei. Acho que recordar amores passados é como passar a mão pelas cicatrizes. Acabamos sempre a lembrar-nos da ferida, do golpe, da dor. Ainda não percebi se é uma boa prática, mas acho que acaba por ser inevitável. 
E então mil e uma respostas me vieram à cabeça, mas acabei por responder assim
- Um dia conheci, mas já não. 



Pedro R. 

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